Um polonês, um brasileiro e um francês expuseram as mentiras de seus países sobre o papel da URSS na 2ª Guerra Mundial

Cristiano Alves
11 min readMay 7, 2021

Originalmente publicado no jornal RIA FAN da Rússia
Em
https://riafan.ru/1439868-polyak-brazilec-i-francuz-razoblachili-lozh-svoikh-stran-o-roli-sssr-vo-vtoroi-mirovoi
Tradução do russo para o português: Cristiano Alves

Muitos no Ocidente querem consignar ao oblívio o verdadeiro curso dos acontecimentos na Segunda Guerra Mundial. Mas também há pessoas que estão lutando por esclarecimentos sobre a da guerra.

Correspondentes da FAN conversaram com o ativista Jerzy Tyc, que restaura monumentos aos soldados soviéticos na Polônia, o recriador militar brasileiro Cristiano Alves de Lima e o documentarista francês Didier Feldman, que fez um filme sobre Stalingrado, para provar que a verdade ainda está viva.

“A posição das autoridades polonesas assenta-se em três pilares”

Nosso primeiro interlocutor é Jerzy Tyts. Ao mesmo tempo, ele fundou a ONG “Kursk”, nomeando-a em homenagem à Cidade Russa de Glória Militar e em homenagem à Batalha de Kursk. Ele, pode-se dizer, está fazendo um trabalho heróico, restaurando e protegendo em sua terra natal monumentos a soldados e oficiais soviéticos que morreram durante a Segunda Guerra Mundial.

- Jerzy, o que as pessoas na Polônia pensam sobre quem ganhou em 1945?

- Devemos começar com o fato de que os poloneses estão muito divididos quanto ao tema da história. Alguns consideram que o Exército Vermelho e o Exército Polonês nos libertaram, que foram eles que nos trouxeram a liberdade total. Que foram eles que devolveram nosso país ao mapa do mundo, que destruíram esse maldito mal hitlerista. Essas pessoas são pelo menos 50% da população.

Mas existem, é claro, aqueles que criticam duramente todas as conquistas do Exército Vermelho. Sim, ela expulsou os nazistas de nossas terras, mas fez isso para tomar nossas terras e fazer da Polônia sua 17ª república socialista (na época do fim da Grande Guerra Patriótica, a RSS Karelo-Finlandesa também fazia parte do União Soviética. — Nota da FAN). Há pelo menos 30% dessas pessoas.

- O resto, presumivelmente, adere a uma posição neutra?

- Sim.

- E quem são esses trinta por cento?

São as pessoas que votam, elegem o moderno governo polonês. E sua posição histórica, digamos, se apóia em três pilares. Primeiro, os russos atacarão a Polônia da maneira como atacaram em 1944. O segundo pilar: eles não nos libertaram, só trouxeram uma ocupação nova e diferente. E a terceira história muito interessante é que em 2010 o avião com o presidente polonês Lech Kaczynski foi deliberadamente abatido em Smolensk não apenas pelos serviços especiais russos, mas praticamente pelo próprio Vladimir Putin! Estas são as três fundações graças às quais o atual governo consegue vencer as eleições.

- É por isso a história está sendo reescrita na Polônia?

- Na verdade, esta é uma verdadeira guerra contra a história, uma guerra declarada até contra os monumentos e túmulos dos soldados soviéticos. E visa a uma luta imaginária com o governo russo moderno e com Putin. Tenho certeza disso.

E tudo por quê? Porque todos esses políticos e líderes ocidentais não podem mais bater na Rússia. Ela é um poder, é forte, invencível, avassalador! Então vamos de alguma forma picá-la: humilhar, profanar, insultar os ancestrais russos, seus avós … Pelo menos assim.

É naverdade uma guerra com o governo russo moderno, e está acontecendo em toda a Europa Ocidental. Você sabe que há somente um motivo, se você não pode lutar de verdade com a Rússia, então vamos lutar na história.

“Foi a carne moída que ganhou a guerra!”

- Você acha que essa situação algum dia pode mudar para melhor?

- Sabe, tem gente que você nunca vai conseguir convencer! E elas sempre existiram, porque a história geral do nosso relacionamento nem sempre foi agradável. Embora se trate de passado, as pessoas mergulham nele, e não querem acreditar nas evidências, nos fatos: é agradável e conveniente para eles. Eles parecem estar constantemente lutando contra a Rússia.

Pessoalmente, não consigo entender que tipo de processo está acontecendo em suas cabeças, mas ele existe e está no sangue de muitas pessoas na Polônia …

- Eles raciocinam mesmo dessa forma ou isso é dito para eles?

- Eu acho que na maioria das vezes eles pensam assim mesmos, eles inventam tudo para simesmos. Para que? No final das contas, para agradar ao nosso longínquo vizinho do outro lado do oceano, que, como vocês sabem, se considera o vencedor da Segunda Guerra Mundial. Na opinião deles, a guerra foi vencida pela América, que em 1944, quando tudo já estava decidido na Europa, na verdade, pelo Exército Vermelho, abriu a Segunda Frente, desembarcando na França. Foi ela quem acabou com os nazistas e os derrotou!

Bem, sim, claro, uma posição muito boa. Mas! Não corresponde à verdade de forma alguma. Agora tudo se destina a provar que a contribuição do exército soviético foi muito pequena, que se não fosse pela carne moída da América fornecido sob o Lend-Lease, os soldados soviéticos não teriam ganhado nada. Você entende que aquele guisado estava decidindo tudo nesta guerra ?! Não tanques, aviões e heróis, mas guisado!

Veja só que curioso. Todas essas pessoas, a grosso modo, não querem a agressão russa, temem que a Rússia invada a Polônia, mas agora há tropas americanas em seu país, há armas dos Estados Unidos, mísseis apontados só para nós. Então o que acontece? Isso agrada a todos aqueles que gritam que o inimigo é a Rússia, mas ao mesmo tempo há bases americanas na Polônia, e eles não reagem a esse fato e acreditam que isso é normal?

- Bem, se você quer dizer o governo e os poloneses que o elegeram, então sim, eles consideram isso normal. Porque soldados americanos foram convidados à Polônia para nos proteger da agressão russa. Este slogan entra em cabeças, mentes, é aceito facilmente e com prazer. Afinal, algumas pessoas acreditam que em 2014 a Rússia atacou a Ucrânia, se apoderou de seu território, e depois da Crimeia estarão os países bálticos e então a Polônia.

Portanto, queridos americanos, venham nos salvar! Você sabe que isso é um absurdo, uma mentira. Porém, se em todos os principais canais de TV essa mentira é espalhada todos os dias, como não acreditar ?! Então alguém acredita.

- Mesmo que a Rússia de repente quisesse tomar a Polônia, como esses americanos ajudariam?

Exatamente! Como os americanos irão nos salvar se houver apenas dois mil deles em nosso país? Além disso, eles provavelmente não entrarão em nenhuma batalha. Mas, sabe como é, graças a esses slogans, a indústria militar funciona muito bem. A Rússia está avançando, então vamos comprar rapidamente aviões, tanques, sistemas de mísseis … As autoridades polonesas precisam disso. Embora o medo que está sendo alimentado seja apenas um truque. E por quanto tempo isso vai continuar, não sei …

“Bolsonaro absolveu Hitler”

Cristiano Alves de Lima é blogueiro e tradutor, um amante de longa data da cultura e da história russas. Na Internet, ele luta ativamente contra a russofobia, conta ao Ocidente sobre a história e a cultura da Rússia. Além disso, ele é um participante ativo do movimento de recriação.

- Cristiano, como você e seus compatriotas interpretam os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial?

- A Segunda Guerra Mundial é um momento muito importante na história da humanidade, porque depois dela surgiu o conceito moderno de Direitos Humanos. Como disse o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, em seu discurso de 2010, esta foi uma vitória do humanismo sobre o racismo.

O Exército Vermelho combateu o modelo de Adolf Hitler, para o qual a raça superior deveria conquistar todos os outros povos e mostrou que ele não deveria ter lugar em nossos dias

O Brasil, de fato, foi o único país latino-americano que enviou unidades militares à Itália para lutar contra os nazistas. Mas nós no Brasil, infelizmente, temos muito poucas informações sobre isso. No fundo, estão tentando nos impor a versão de que na verdade não foi a União Soviética que ganhou a guerra, mas os Estados Unidos e seus aliados ocidentais.

Ao mesmo tempo, não nos são mostrados materiais norte-americanos, como, por exemplo, o conhecido documentário “Battle of Russia”, em que o verdadeiro papel da União Soviética é apresentado de um ponto de vista neutro e com muita objetividade.

- Que outros exemplos de reescrita da história você pode dar?

- Considero muito importante educar as pessoas, especialmente quando nosso presidente, Jair Bolsonaro, absolveu Hitler em sua entrevista numa rádio. Ele disse que, é claro, não concordava com as idéias de Hitler, mas que era um grande general e, como qualquer bom general, precisava aniquilar seus oponentes. O que isso significa? Genocídio durante o bloqueio de Leningrado? Atrocidades em toda a União Soviética?

O presidente justifica isso, e seu filho, um deputado, ou seja, um representante do povo, chegou a propor reiteradamente uma lei proibindo a manifestação dos símbolos da Vitória. Eles são a foice e o martelo, assim como a estrela vermelha da União Soviética. Além disso, o Exército Brasileiro saudou, inclusive em sua página oficial, o major nazista Otto von Westernhagen, que participou do Bloqueio de Leningrado na Frente Oriental.

Enquanto tivermos tal elite, que faz apologia dos nazistas e, de fato, reescreve a história, não podemos falar de qualquer objetividade e de qualquer desenvolvimento das relações entre Brasil e Rússia.

“Recriadores não são aventureiros e nem cosplayers”

- Como você chegou ao movimento de recriação?

Tive minhas primeiras impressões da reconstrução histórica lá no Brasil. Assisti a fotos e vídeos em grupos históricos na Europa e na Rússia. Então eu queria que tivéssemos algo semelhante. Mas só existe um clube no Brasil, ele está localizado em São Paulo. Seus membros participam de alguns eventos cerimoniais. Já houve várias tentativas de fazer reformas semelhantes no Brasil, mas nossas possibilidades são limitadas por leis que, de fato, não nos permitem ter armas vazias em casa. Adquirir um uniforme também não é fácil.

Além disso, realizar atividades de recriação requer um grande número de medidas de segurança, uma vez que o Brasil tem um problema gravíssimo com a criminalidade. As pessoas podem roubar armas e depois assaltar um banco, loja ou transeuntes. Mas eu diria que a principal dificuldade é o desinteresse do governo e de organizações que dispõem de meios para a realização desses eventos.

Em que nosso governo está interessado? No meu estado, na cidade de Sobral, a prefeitura local ordenou que as ruas da cidade fossem decoradas não com algo que lembrasse a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, mas com bandeiras de arco-íris. Em vez de celebrar a Grande Vitória, nosso governo prefere tal abominação.

- O que você pode dizer sobre os movimentos de reencenadores na Rússia? Do que você mais se lembra durante sua estadia em nosso país?

- Na Rússia, vi que as pessoas realmente se interessam por história. Conversei com gente de diferentes grupos de recriação, fui até convidado para ser membro honorário do clube de reconstrução histórica “Komsomolets” e assistir a um filme do clube 8ª Bateria muito interessante sobre a participação das mulheres na Grande Guerra Patriótica — “Predstavit k nagrade” (Em português “Apresentar-se para a condecoração”). Eu vi em uma exibição privada: algumas pessoas até choraram enquanto assistiam. Isso nos lembra que um povo lutou contra o nazismo, por um mundo melhor, pelos princípios básicos do humanismo e dos direitos humanos.

Conversei com várias pessoas que estão interessadas na recriação histórica. Há quem economize na comida, mas compre equipamentos e uniformes, não só soviéticos, mas também do Wehrmacht. É mais caro e, além disso, não é fácil desempenhar o papel do lado errado do conflito.

Provavelmente há pessoas que não entendem o significado do movimento de recriação. Acredito que a melhor recompensa para nós foi a presença de veteranos, militares e até generais que nos agradeceram por participar da reconstrução dos eventos relacionados ao Bloqueio de Leningrado e à vitória na Grande Guerra Patriótica.

Este é um movimento muito forte na Rússia. Seria bom se pessoas de outros países do mundo tentassem realmente fazer isso, com pesquisas. Em primeiro lugar, os recriadores são pesquisadores de um tópico. Não são meros aventureiros ou cosplayers que simplesmente pensam que o uniforme é legal e decidem usá-lo. São pessoas que estudam o período histórico e se comunicam com os participantes dos eventos.

“A França tem muitos problemas com a história”

Nosso último herói é o diretor Didier Feldman, que filmou o documentário “Crônicas do Volga” dedicado à Batalha de Stalingrado. Ele passou quatro anos estudando literatura sobre a Grande Guerra Patriótica e também visitou Volgogrado antes de escrever o roteiro de seu filme.

- Didier, por que você decidiu contar a história da Batalha de Stalingrado para o público francês? O que este evento significa para você pessoalmente?

- O meu filme “Crônicas do Volga” fala de Stalingrado, bem como da Grande Guerra Patriótica … A minha decisão de fazer este filme baseia-se em vários motivos, sendo o principal o desejo de pagar uma dívida de memória, para honrar sacrifícios feitos por homens e mulheres soviéticos, soldados, guerrilheiros, civis. E também de humildemente enfrentar o engano histórico de retratar os britânicos e americanos como libertadores da Europa ocupada pelos alemães. E, finalmente, esta é a memória das minhas raízes russas distantes: meu bisavô e avô paterno nasceram na cidade de Nikolayev.

Quando penso ou falo sobre Stalingrado, a frase de Vasily Grossman do romance “Vida e destino” vem à minha mente: “Stalingrado tornou-se um sinal do futuro.” Embora antes tenha havido Moscou, e depois Kursk, Stalingrado é um ponto de inflexão, é um símbolo: este é o primeiro vislumbre real de esperança desde 1939, mesmo desde 1933, um vislumbre da Alemanha destruída pelos nazistas. Em certo sentido, este é o início do nosso presente.

- Você percebe mudanças na percepção dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial nos últimos 10–20 anos? Caso sim, como elas são expressas?

- Infelizmente, acho que a percepção desse evento histórico é destruída a cada ano. Há várias razões para isso …

A influência da cultura americana, com sua reescrita da história a seu favor, tem sido dominante na França desde a década de 1950 e estabeleceu uma base sólida para o engano. A evolução social dos últimos 20 anos na França e no Ocidente em geral é a evolução de uma sociedade cega ao passado, que o deixa, que quer pensar apenas no presente.

Além disso, a moda do histotainment (um termo para filmes, livros, jogos divertidos sobre um tema histórico. — Nota da FAN), parece-me, busca simplificar os fatos e a análise histórica. Satisfaz os interesses do público mais do que revela a verdade. Por exemplo, ao apresentar a Grande Guerra Patriótica, a ênfase está no stalinismo, e não no povo soviético.

Finalmente, a França é diferente porque tem muitos problemas com sua própria história. Seja como for, este país colaborou com os nazis durante cinco anos a nível político, econômico e ideológico e deportou os seus próprios cidadãos judeus e não judeus, confundindo calmamente a libertação da França com a libertação da Europa. A França se apresenta como uma mártir, embora ela soubesse pouco sobre a guerra em seu território, e arroga para si mesma um papel na vitória sobre o nazismo, enquanto sua participação foi muito secundária.

Como um lembrete, em 8 de maio de 2020, Genevieve Dariesque, Secretária de Estado do Ministro das Forças Armadas da França, postou um tweet no qual ela escreveu: “No dia 8 de maio, quero saudar especialmente nossos aliados”, acrescentando as bandeiras dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, mas não URSS … Infelizmente, esta mensagem resume bem a visão francesa da Segunda Guerra Mundial, bem como o lugar que as vítimas militares soviéticas ocupam na memória da França , o oblívio.

- Em sua opinião, o que poderia ser feito para preservar a verdade histórica sobre a Grande Guerra Patriótica?

Resistir, mostrar perseverança através de livros, filmes, eventos, artigos, sabendo que isso é muito pouco se comparado aos preconceitos que se desenvolveram ao longo de 80 anos.

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